‘A Valsa em Lugares Esquecidos’ leva Nelson Rodrigues às penitenciárias femininas e devolve às mulheres o direito à arte
- eusoums
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Foram cinco sessões e duas rodas de conversa em que cerca de 150 mulheres privadas de liberdade puderam ter um encontro raro com o teatro. O projeto “A Valsa em Lugares Esquecidos”, idealizado e protagonizado por Tauanne Gazoso, levou o espetáculo “Valsa nº 6”, de Nelson Rodrigues, ao Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada e ao Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi, em Campo Grande (MS).
A atriz e idealizadora Tauanne Gazoso encarna Sônia, uma jovem assassinada que tenta reconstruir, entre delírios e lampejos de memória, o mistério da própria morte. Escrita em 1951, “Valsa nº 6” é uma das obras mais enigmáticas de Nelson Rodrigues — um monólogo de uma alma aprisionada entre lembrança e esquecimento, atravessada por vozes, fantasmas e desejos.

“Eu quis olhar para essas mulheres e dizer que a arte também é um direito delas”, explica Tauanne. “Sônia está presa num limbo, tentando entender o que aconteceu com ela. E talvez, de alguma forma, essas mulheres também estejam tentando reconstruir as próprias histórias. O teatro cria essa ponte: ele não julga, ele ouve”.
O teatro entra onde a arte não chega
O projeto percorreu duas unidades prisionais administradas pela Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário). Foram cinco apresentações e duas mediações culturais conduzidas por Tauanne e Halisson Nunes, que abriram espaço para que as internas compartilhassem suas impressões, lembranças e sentimentos.
O cenário, montado em pátios e auditórios simples, se tornava um palco vivo. Bastava as cadeiras, luzes e o som da valsa para que o ambiente se transformasse. Em silêncio, as mulheres observavam Sônia falar com sombras, repetir lembranças, rir de um passado que não volta. Algumas choravam. Outras sorriam timidamente. Quando o espetáculo terminava, a plateia permanecia quieta por alguns segundos.
A primeira sessão aconteceu no dia 21 de outubro, para as internas do regime semiaberto. Cerca de 75 mulheres acompanharam o espetáculo com atenção quase reverente. “Eu me senti maravilhada com o teatro, amei. A última vez que vi uma peça eu era criança — e nem lembrava mais. Agora quero ver mais vezes, fiquei arrepiada. Eu e minha amiga do lado ficamos arrepiadas, porque foi surreal”, disse Larissa*, emocionada. “É muito importante ver esses temas voltados para as mulheres aqui dentro, mostra pra gente muitas coisas que passamos”, completa.
Entre o público, havia quem já tivesse estado sobre um palco. Luiza* lembrou de quando dançava balé no Teatro Glauce Rocha, ainda menina. “A forma como ela transmitiu as emoções de Sônia foi impecável, lindo mesmo. Eu senti medo, ansiedade e curiosidade. Teve suspense, teve entrega. Foi muito diferente assistir num espaço assim, mais perto, com o som e a luz tão próximos da gente. Foi uma experiência imersiva e linda”, contou.
A diretora em substituição legal do Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada, Jaqueline Cunha, também destacou a importância da presença da arte no ambiente prisional: “O teatro e a cultura são essenciais para o desenvolvimento humano. Essas mulheres vivem num universo de sombras, e a arte vem para apaziguar, para trazer luz. É um espaço de emoção, de sensibilidade, e isso é transformador”, afirmou.
Sônia, entre o delírio e a redenção
Na concepção cênica de Tauanne Gazoso, Sônia deixou de ser apenas a vítima indefesa de um crime e se tornou uma mulher em ritual de libertação. O espetáculo, que originalmente terminava em confusão e mistério, ganhou um novo desfecho: Sônia renasce como uma Pomba Gira Menina, uma entidade de luz que trabalha na proteção de mulheres, jovens e meninas que sofreram violência e injustiça e senhora da autonomia feminina.
“Quando pensei nessa transformação, percebi que era preciso devolver a Sônia o poder de existir — não como um fantasma, mas como uma força ancestral”, conta Tauanne. “Ela deixa de ser a menina morta e se torna a mulher inteira. É uma metáfora para todas essas mulheres que estão ali, privadas de liberdade, mas cheias de potência e vida”.
O gesto final — Sônia dançando ao som da valsa, agora com o corpo livre, girando em espiral até desaparecer na penumbra — foi recebido com aplausos, lágrimas e silêncio. Ao término de cada sessão, as mulheres eram convidadas a conversar com a atriz, compartilhando emoções, lembranças e perguntas.
Na plateia do Irmã Irma Zorzi, Débora*, que cumpre pena há dois meses, se emocionou. “É a primeira vez que vejo teatro aqui dentro. Chorei lembrando dos meus filhos e irmãos. Minha família sempre fazia teatro na igreja, e isso me trouxe uma lembrança boa, um acolhimento”, contou.
O psicólogo Alex Fabiano Silva de Lima, que atua na unidade, destacou o efeito emocional da experiência: “As atividades culturais são fundamentais porque trazem reflexão, sensibilizam e humanizam. A arte muda a forma como essas mulheres se veem e se comportam. Quando elas vivenciam algo assim, há uma elaboração emocional, um novo olhar sobre si mesmas. Isso tem impacto real na convivência e na forma como elas se adaptam aqui dentro”.
Arte, direito e liberdade
O projeto “A Valsa em Lugares Esquecidos” foi contemplado por edital de fomento da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), do Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura (MinC), e operacionalizado pela Prefeitura de Campo Grande, através da Fundac (Fundação Municipal de Cultura).
Antes das apresentações nas unidades prisionais, o público pôde assistir ao espetáculo no Sesc Teatro Prosa, no dia 16 de outubro, com tradução em Libras e ingressos gratuitos. Mas foi nas penitenciárias que o teatro cumpriu seu destino mais profundo: o de atravessar muros — físicos e simbólicos — e devolver às mulheres o direito ao espanto, à emoção e à arte.
Para Halisson Nunes, responsável pela preparação corporal e produção executiva, o gesto é, acima de tudo, um manifesto: “Levar o teatro a esses espaços é um ato político e poético. O título do projeto não é só uma metáfora — são realmente lugares esquecidos pela arte e pela cidade. E quando uma mulher ali se emociona, se reconhece, algo se move. É disso que se trata: de mover”.
*Os sobrenomes foram ocultados para preservar a identidade das mulheres.





